1. O DIREITO CONSTITUCIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA.

A Constituição da República Federativa Brasileira garanteo acesso à justiça, tido como princípio da inafastabilidade do controlejurisdicional, o qual é vazado nos seguintes termos, contidos em seu artigo 5º,inciso XXXV: “a lei não excluirá daapreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O sentido dessa norma pode ser encontrado na seguinteafirmação: “Não há, pois, como admitir, v.g., que, em alguns casos, sejaretirada do Estado-Judiciário a possibilidade de apreciação de certas lesões adireitos. Tendo o Estado assumido o monopólio da função judiciária, por suavez, não há como o juiz escusar-se de sentenciar. Inadmissível, ainda, ajustiça privada, com o exercício do direito pelas próprias mãos (Correia, 2002,p. 21)”. O que estabelece a norma constitucional é a impossibilidade desubtração, à análise do Poder Judiciário, de quaisquer modalidades de discussãosobre direitos, como já se verificou no passado, com exemplos de proibição deacesso à justiça por questões raciais ou políticas (Nery Jr., 2000, p.95).

Todavia, deve-se discutir o real alcance do direito de acesso à jurisdição, de modoque não seja apenas mero direito em tese.Com efeito, a Constituição garante a todos, abstratamente, o direito deingresso em juízo. Entretanto, alguns pontos concretos impedem, de fato, queesse direito seja universalmente gozado. Nas precisas palavras de AdaPellegrini Grinover, “acesso à justiça nãose identifica, pois, com a mera admissãoao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo (1996, p. 33)”.

Semelhante posicionamento é o de Daniel Herrendorf eGérman Bidart Campos: “…el acceso a la justicia no se satisface con dejar ytener expedita la posibilidad formal de acudir ante un tribunal judicial. Haytodo un cúmulo de aspectos que rondan no sólo el acceso fácil y eficaz, sino alproceso con toda la gama de problemas que lo recorren. A ello hay que depararleatención y soluciones útiles. De lo contrario, nos quedamos en el formalismo, yya sabemos que los derechos personales son cosas de la realidad, de la vida, dela convivencia. Es allí donde deben allanarse los óbices y las dificultades(1991, p.389)”.

Necessário, portanto, a possibilidade efetiva de acesso ao judiciário, comtodos os mecanismos processuais voltados para tanto. A Sociologia Jurídicacostuma apontar alguns pontos críticos nessa questão: “... os estudosrealizados sobre a explosão da litigiosidade obrigaram o rever de algumasidéias feitas sobre [o acesso à justiça].Por um lado, as medidas mais inovadoras para incrementar o acesso das classesmais baixas em breve foram eliminadas, quer por razões políticas, quer porrazões orçamentais. Por outro lado, questionou-se o âmbito da tutela judicial,pois muitas vezes, apesar de seu alargamento, os tribunais continuaram a serselectivos na eficiência com que responderam à procura da tutela judicial. Nunspaíses mais do que noutros, o desempenho judicial continuou a concentra-se nasmesmas áreas de sempre. Além disso, o aumento da litigiosidade agravou atendência para avaliação do desempenho dos tribunais em termos de produtividadequntitativa. Essa tendência fez com que a massificação da litigação desseorigem a uma judicialização rotinizada com os juízes a evitaremsistematicamente os processos e os domínios jurídicos que obrigassem a estudoou a decisões mais complexas, inovadoras ou controversas (Santos, 1996, p.29)”.

De fato, e a fim de alcançar a efetividade do princípioconstitucional do acesso à justiça - principalmente sob o impulso dos estudosde Mauro Capelletti e Bryan Garth - a pesquisa da Sociologia Jurídicacentrou-se na tentativa de encontrar os óbices existentes a tal fim. Uma dasprimeiras etapas dessa tarefa foi a descoberta de três obstáculostradicionalmente encontrados por aqueles que buscam as Cortes Judiciárias,quais sejam barreiras financeiras, culturais ou de ordem psicológica. Pararesolver tais problemas, algumas soluções foram postas em prática em diversospaíses, inclusive aqueles componentes do Mercosul: serviços de assistênciajudiciária gratuita; representação de interesses difusos através de demandascoletivas; juizados de pequenas causas; técnicas de conciliação e mediação,etc… (Balate, 1999, p. 448).

Todavia, a problemática do acesso efetivo à jurisdição não reside unicamente nos fatores econômicos esócio-culturais há pouco ressaltados. A questão pode ser vista atualmente pornovo prisma, considerando-se agora o impacto das novas tecnologias nos sistemasjudiciários tradicionais, totalmente assoberbados pela burocracia e pelacultura burocrática[1], bem como acrescente integração dos países em blocos regionais, como sói ser o caso doMERCOSUL.

Embora os Pactos de Integração prevejam instânciasjudiciárias de decisão sobre conflitos surgidos no seio dos países-membros – noque o MERCOSUL ainda engatinha, caso comparado com a experiência européia -, emtermos pragmáticos, principalmente perante a realidade latino-americana, autilização destes recursos procedimentais não se pode considerar sejaconsentânea à idéia de acesso efetivo à justiça. O excesso de formalismo e opróprio trâmite burocrático inerente ao processo de integração impedem aconcretização daquele primado de justiça.

O debate que ora propomos visa trazer à tona a discussãosobre quais reflexos podem surgir da utilização das novas tecnologias deinformática em relação ao acesso à justiça, partindo da premissa de que ochamado processo digital podecontribuir para o aprimoramento deste elementar direito fundamental.[2]

 

2. A GARANTIACONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA E SUA INTERPRETAÇÃO FACE A REVOLUÇÃOTECNOLÓGICA: O PROCESSO DIGITAL.

Interpretar, conforme assentadopela doutrina, é atribuir um sentido à norma jurídica. Todavia, a interpretaçãojurídica não é atemporal, poismodifica-se em consonância com as transformações vivenciadas pela sociedade.

Celso Bastos, manifestando-se sobre a denominadainterpretação evolutiva, com enfoque na evolução tecnológica em face da normajurídica diz que “o desenvolvimento técnico da ciência em geral, com as repercussõesque acarreta na vida do indivíduo em sociedade, e que a legislação muitas vezesnão é capaz de acompanhar, acaba por propiciar um substrato favorável aodesenvolvimento da interpretação evolutiva. Esta forma de interpretaçãobaseia-se na realidade para, a partir dela, mas sem se descurar dos limitesnormativos do texto legal, chegar a resultados mais satisfatórios do ponto devista do nível evolutivo em que se encontra a sociedade (2002, p. 247)”.

No mesmo sentido é o pensamentode Anna Candida da Cunha Ferraz: “Sem contrariar o texto legal da Constituição,admitem-se novos conteúdos ao mesmo, em razão de mudanças históricas ou defatores políticos e sociais, que não estavam presentes na mente dosconstituintes quando elaboraram a Constituição. Este o chamado método evolutivo, interpretação evolutiva oucritério evolutivo aplicado à interpretação constitucional (1986, p. 45)”.Embora a aludida jurista não mencione o fator tecnológico como impulso deinterpretação evolutiva, cremos ser perfeitamente possível o emprego analógicodo raciocínio ali desenvolvido.

A doutrina já começa a perceberos efeitos provocados pela Revolução Digital no âmbito jurídico: “Em épocasmais recentes, a evolução tecnológica tem repercutido no Direito de maneiraparticularmente acentuada. E o impacto da tecnologia foi tamanho que há quem serefira a uma Idade Tecnológica. Por conta disso, e por estar o Direitoatrelado, em sua efetividade, às mutações sociais, opera-se uma verdadeirarevolução no mundo jurídico, que se adapta, por assim dizer, aos novos tempos.Pode-se seguramente afirmar que o setor que mais profundamente carece de novasformulações, tendo em vista a prática social, é aquele referente à informática,em seu dúplice aspecto, vale dizer, tanto no que toca ao Direito aplicado àinformática quanto à informática aplicada ao Direito. Destaca-se, ainda, dadasua espantosa proliferação, a rede mundial de comunicação de dados, denominadaInternet (Bastos & Tavares, 2000, p. 692-693)”.

Em relação à interpretaçãoconstitucional do princípio do acesso à justiça, o que se prentende, portanto,é dar contemporaneidade ao adágio de Carlos Maximiliano, segundo o qual “aConstituição aplica-se aos casos modernos, não previstos pelos que a elaboraram(apud Ferraz, 1986, p. 46)”.

A questão do acesso à justiça também pode ser pensadaconforme outra corrente de pensamento, que procura tratar das diferentes exigências técnico-processuais aptas a assegurar aimplementação desse direito de acesso às cortes e aos tribunais. Essa acepção temcaráter sobretudo técnico, e trata do conteúdo mesmo da garantia que o Estado,principalmente o aparelho judiciário, devem oferecer para assegurar a todos osinteressados esse acesso efetivo à justiça. Exemplos de garantias técnicas,nessa acepção, são o direito à obtenção de medidas urgentes para salvaguarda dedireitos; o exame contraditório dos fatos; o direito de apelar; o direito deobter um julgamento dentro de um prazo razoável, etc… (Balate, 1999, p.447-449).

Para Cândido Rangel Dinamarco, compreende-se a técnica como a “predisposição ordenadade meios destinados a obter certos resultados. Toda técnica, por isso, éeminentemente instrumental, no sentido de que só se justifica em razão daexistência de alguma finalidade a cumprir e de que deve ser instituída epraticada com vistas à plena consecução da finalidade. Daí a idéia de que todoobjetivo traçado sem o aporte de uma técnica destinada a proporcionar suaconsecução é estéril; e é cega toda técnica construída sem a visão clara dosobjetivos a serem atuados. Técnica processual é, nessa ótica, a predisposição ordenada de meios destinados àrealização dos escopos processuais (2002, p. 273-275)”[3].

Como afirma Roberto Dromi, “latecnología debe asistir al derecho y contribuir instrumentalmente a una mejoradministración de justicia. Además del equipamento humano profesionalizado,requiere de instrumentos tecnológicos (1994, p. 44)”. Este é justamente o campoda informática jurídica, ou seja, oestudo da informática aplicada ao Direito. Pretende-se, nesta área, “a análisedas formas possíveis de utilização da informática no campo jurídico, mas semprede maneira a explroar ao máximo os avanços tecnológicos, obtendo-se um altocoeficiente de aproveitamento dos sistemas tecnológicos atualmente disponíveis(Bastos & Tavares, 2000, p. 693)”.

E nesse sentido, em totalcontrariedade a uma perspectiva de acesso realà justiça, necessário registrar que “el derecho procesal, responsible de lajuridización formal, mantiene aún técnicas procedimentales inadecuadas, comoson las pluralidades de legitimaciones y de plazos, e innecesariamentehererogéneas, evidenciadas en la multiplicidad de vías procesales en razón dela organización política del Estado y de la naturaleza de los procesos (Dromi,1994, p. 42-43)”.

O processo digital, nestes termos, é aqui definido como o conjunto demedidas tecnológicas, voltadas para o melhor aproveitamento das fases e atosprocessuais, de molde a possibilitar uma prestação jurisdicional mais célere eefetiva. Em suma: a tecnologia a serviço da justiça.

 

3. CONCLUSÕES.

Sob a ótica acima apresentada é que se procura defenderque os novos mecanismos tecnológicos, aplicados ao Direito, talvez possamcontribuir para a melhora concreta na aplicação e efetivação do referidoprincípio do acesso à justiça, suprindo as apontadas insuficiências do PoderJudiciário, principalmente no que concerne às questões surgidas no âmbitocomunitário.

Assim como Roberto Dromi, “entendemos que el derecho debeir al encuentro de los objetivos de la comunidad política y reflejar losgrandes cambios sociales a través de respuestas a las demandas de la socieadad(1994, p.34)”. Nestes termos, a técnica deve ser posta a serviço dos propósitosestabelecidos na legislação processual e, principalmente, na Carta Constitucional.Em nosso caso específico, vale dizer que a técnica processual deve ser todaempregada no sentido de concretizar o ideal de acesso à justiça, especialmente em relação às questões judiciaissurgidas no âmbito de países integrados em blocos regionais.

Ademais, concordamos com Bidart Campos, para quem “si porun lado se mira a la tecnología como deshumanizadora, por el otro es capaz dealiviar o hasta sustituir el esfuerzo físico del hombre, sustrayéndolo delagobio laboral, todo lo que demuestra que, bien empleada y bien integrada en lavasta rede de presupuestos y factores de otra índole (sociales, culturales,económicos), brinda servicios que una buena política de derechos humanos estáen condiciones de aprovechar (1991, p. 311)”.

Nestes termos é que deve serexaminada a proposição da utilização do processodigital como mecanismo de efetivação-concretizaçãodo princípio constitucional do acesso à justiça, particularmente no âmbitodo MERCOSUL.

Caso contrário, ficaremos emsituação como a descrita na severa advertência de Ferdinand Lassalle, e aConstituição pode sucumbir às forças reais de poderm, transformando-se emsimples folha de papel (2001, p. 33),com a conseqüência de suprimir-se, de fato, o direito de acesso à justiça.

 

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS:

BALATE,Éric. Acesso à justiça, in ARNAUD, André-Jean (org.), Dicionário Enciclopédicode Teoria e de Sociologia do Direito, 2 ed., trad. WUILLAUME, Patrice, Rio deJaneiro: Renovar, 1999.

BASTOS,Celso Ribeiro & TAVARES, André Ramos. As Tendências do Direito Público nolimiar de um novo milênio, São Paulo: Saraiva, 2000.

BASTOS,Celso Ribeiro Seixas. Hermenêutica e interpretação constitucional, 3ª ed., rev.e ampl., São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002.

BIDARTCAMPOS, Germán J.. Teoría general de los derechos humanos, Buenos Aires:Astrea, 1991.

CORREIA,Marcus Orione Gonçalves. Direito Processual Constitucional, 2ª ed., Sçao Paulo:Saraiva, 2002.

DINAMARCO,Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 10ª  ed., ver. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002.

DROMI,Roberto. Nuevo Estado, nuevo Derecho, Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina,1994.

FERRAZ,Anna Candida da Cunha. Processos Informais de mudança da Constituição: MutaçõesConstitucionais e Mutações Inconstitucionais, São Paulo: Max Limonad, 1986.

GRINOVER,Ada Pellegrini et alli, 12 ed., rev.e atual., São Paulo: Malheiros, 1996.

HERRENDORF,Daniel E. & BIDART CAMPOS, Gérman J.. Principios de Derechos Humanos yGarantías, Buenos Aires: Ediar, 1991.

LASSALLE,Ferdinand. A Essência da Constituição, 6 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris,2001.

NERY JR.,Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6 ed., rev., ampl. eatual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

SANTOS,Boaventura de Souza et alli. OsTribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português, Porto: Afrontamento,1996.



[1] “Pero la cultura burocrática no sólo se da en la administración pública,sino también en la administración de justicia. Ambas comparten el exceso depapeleo y la utilización arcaica del expediente. Administración y justiciaviven hoy del, por y para el expediente. Nadie escapa a su dominio. Es elparadigma de la cultura burocrática, que nos indica: dentro del expedientetudo, fuera del expediente nada (Dromi, 1994, p. 47-48)”.

[2] A idéia que pressupõe nossa defesa de um modelo de processo digital como mecanismo de acesso à justiça é a de desburocratização dos procedimentosjudiciais pela via da utilização destes mecanismos tecnológicos que serãoadiante examinados. A respeito da temática da burocracia como entrave paraimplementação dos direitos humanos, o que possui direta vinculação com o temado acesso à justiça – procura-se ampliar o direito de acesso à justiçajustamente no afã de concretizar os direitos fundamentais constitucionalmenteconsagrados -, ver a excelente exposição dos já citados Daniel E. Herrendorf eGérman Bidart Campos (1991, p. 361-367).

[3] Sob esta ótica é que vem ocorrendo a reforma da legislação processualcivil brasileira. Todas as alterações legislativas neste sentido tiveram comoescopo garantir a efetividade do processo (Bastos & Tavares, 2000, p.434-435)”.

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